A capacidade de antecipar e gerenciar riscos sempre esteve no centro do negócio das seguradoras. Tradicionalmente, elas baseavam suas decisões em dados históricos e modelos estatísticos convencionais para avaliar exposições a riscos e calcular reservas. No entanto, essa abordagem, que tende a ser eficaz para cenários conhecidos, tem uma série de limitações quando se trata de eventos sem precedentes ou combinações complexas de fatores de risco.
A evolução do ambiente regulatório e a crescente complexidade dos riscos criam um cenário em que ferramentas analíticas mais avançadas e abordagens inovadoras para modelagem de cenários são essenciais. Eventos como pandemias, mudanças climáticas extremas e transformações socioeconômicas aceleradas ilustram estas lacunas de métodos tradicionais de análise de risco – e criam a necessidade de simular situações que nunca ocorreram antes.
O setor de seguros brasileiro está passando por uma grande transformação com as novas exigências regulatórias da SUSEP (Superintendência de Seguros Privados), entre elas o ORSA (Own Risk and Solvency Assessment), um processo de autoavaliação que exige das seguradoras a análise prospectiva de todos os riscos que podem impactar sua solvência, introduzido formalmente em setembro do ano passado. Essas mudanças exigem que seguradoras façam uma abordagem mais sofisticada na gestão de dados e análise de riscos, abrindo oportunidades para o avanço de analytics e dados sintéticos.
A nova realidade do ORSA
O ORSA é uma mudança de paradigma na forma como as seguradoras avaliam seus riscos. Diferente dos processos tradicionais de compliance, ele demanda cenários de stress variados, como impactos climáticos, mudanças demográficas e crises sanitárias, além da complexidade adicional de testes de stress reversos.
Neste novo contexto, as seguradoras precisam entregar informações muito mais detalhadas aos órgãos reguladores, como dados de apólices, beneficiários, sinistros, pagamentos de comissões, ações judiciais, casos de fraude e mapeamentos completos de riscos internos. Esta nova camada de exigência, que abrange também simulações, vai muito além das entregas tradicionais.
Assim como ingredientes ruins podem resultar em um prato de baixa qualidade, o conceito de “garbage in, garbage out” também é relevante neste cenário. Para que as aplicações analíticas façam sentido no contexto ORSA, seguradoras precisam investir pesado em qualidade de dados, e fazer a identificação correta das relações entre diferentes entidades nos sistemas.
Por exemplo, quando Ricardo Saponara aparece no sistema como segurado, Ricardo com dois Cs surge como prestador de serviço e Saponara com dois Ps emerge como corretor, o sistema precisa reconhecer se é a mesma pessoa ou não, mapeando relacionamentos através de telefones, e-mails, endereços, IPs e padrões comportamentais compartilhados.
A revolução dos testes de stress com dados sintéticos
A grande inovação no contexto de ORSA está na diferença entre testes de stress prospectivos tradicionais e os novos testes reversos que podem ser feitos neste novo cenário com dados sintéticos. Mas antes, cabe rapidamente explicar alguns conceitos fundamentais.
Testes prospectivos são baseados em dados históricos, aplicando variações lineares, como aumento ou redução de percentuais na sinistralidade, taxa de juros ou inflação para projetar cenários futuros. Já os testes reversos com dados sintéticos criam cenários hipotéticos que nunca ocorreram. Como, por exemplo, o impacto de uma nova pandemia em seguros de vida e saúde, ou efeitos de secas severas em seguros rurais.
Para simular eventos sem precedentes, dados sintéticos trazem uma série de vantagens. Primeiro, dados gerados artificialmente eliminam informações pessoais identificáveis, com a criação de gêmeos digitais que mantêm as características estatísticas dos dados originais, sem expor informações dos clientes reais. Segundo, eles permitem gerar registros de sinistros fictícios baseados em cenários inéditos, possibilitando avaliar impactos de eventos extremos de forma controlada. Terceiro, geram grandes volumes de dados para testes de stress, sem as limitações relacionadas a ter um histórico disponível.
Por exemplo, uma seguradora de roubo-furto de celular pode simular o impacto de uma mudança de política pública que liberta os presos de uma região. Neste caso, teríamos um teste de estresse reverso questionando: se isso acontecesse, qual seria o impacto na sinistralidade? Temos algum histórico da relação entre quantidade de presos e roubo de celular? Esses são cenários hipotéticos que demandam simulações de situações sem precedentes.
Muito além do compliance
Análises ORSA com dados sintéticos têm aplicações muito mais abrangentes que a simples conformidade regulatória e impactam praticamente todas as dimensões do negócio das empresas do ramo de seguros. Na gestão de riscos, este modelo permite identificar exposições ocultas e correlações antes invisíveis entre diferentes linhas de negócio. Na precificação, é possível modelar cenários extremos que historicamente nunca ocorreram, permitindo ajustes mais precisos de prêmios baseados em probabilidades refinadas de eventos adversos.
Em solvência, simulações com dados sintéticos calculam com maior precisão o capital necessário para diferentes cenários de stress. Isso ajuda as empresas a otimizarem a alocação de recursos, o que pode evitar tanto uma situação de subcapitalização quanto o excesso de capital imobilizado. Nas estratégias de aceitação, as seguradoras podem simular o impacto de aceitar diferentes perfis de risco em cenários adversos, refinando critérios e identificando nichos de mercado mais resilientes.
Posicionamento de mercado é outra frente que pode se valer desta abordagem. Uma seguradora pode descobrir, por meio de simulações, que determinados cenários adversos tornam uma possível nova frente de negócio inviável. Por outro lado, análises podem mostrar que mesmo cenários adversos têm baixa probabilidade de acontecer, o que gera confiança para expandir determinadas operações ou entrar em novos segmentos.
Esta abordagem também permite avaliar a materialidade de riscos de forma integrada. Uma seguradora de roubo-furto de celular descobriria que uma seca tem pouco impacto em seu portfólio, e não precisa de planos de contingência específicos para mitigar este tipo de risco. Por outro lado, uma seguradora com atuação rural que pudesse ser severamente impactada por secas precisaria desenvolver planos de ação para responder a esse cenário, e calcular o montante financeiro necessário para honrar compromissos assumidos, caso as probabilidades se materializem.
Primeiro você começa, depois você melhora
Em termos de implementação, é inevitável trazer a inteligência artificial para esta conversa. A abordagem que discutimos até aqui requer ferramentas específicas para geração de dados sintéticos, como GANs (Generative Adversarial Networks), além de simulações de Monte Carlo para análises estatísticas avançadas e sistemas integrados para avaliação de impactos financeiros.
Porém, vale lembrar que esta tecnologia no contexto de ORSA vai muito além de chatbots de IA generativa e utiliza múltiplas formas de IA, desde regras de negócio automatizadas até análises de séries temporais econométricas.
Também é importante ter no radar que o gerenciamento simultâneo de dados reais e sintéticos pode provocar desafios de governança, exigindo controles rigorosos de qualidade, processos de validação e documentação detalhada de metodologias.
Para além destes pontos, um dos principais entraves nesta abordagem é a tendência de esperar ter a casa completamente em ordem em relação ao estado dos dados antes de começar. A recomendação, neste caso, é evitar que o ótimo seja inimigo do bom, iniciando simulações com dados atuais e refinando progressivamente a qualidade dos dados em paralelo, aprimorando as simulações conforme os dados melhoram.
A implementação do ORSA e o atendimento às novas regulamentações da SUSEP representam mais do que uma obrigação regulatória. Este movimento pode ser visto como uma oportunidade de facilitar uma nova fase de transformação digital, que por sua vez pode gerar grandes vantagens competitivas.
Com a abordagem de estruturação de dados, resolução de entidades e geração de dados sintéticos, as seguradoras podem tomar decisões mais informadas, gerenciar riscos de forma mais eficaz e otimizar a alocação de capital. Mas o momento é de ação: começar a jornada agora, refinando e aprimorando os processos ao longo do caminho.
*Por Ricardo Saponara, Head de Prevenção a Fraudes para América Latina no SAS.
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